viver à pressa [e um post que não é meu, mas bem podia ser]


Fiquei a pensar na correria inglória de sexta. Passei um fim-de-semana fora a trabalhar. A minha filha ficou e andou de maço para cabaço, de colo em colo, entre os três avós. Na segunda, ontem, tirei o dia para estar com ela, para estar com ele, para por uns pendentes em dia, entre os quais fazer a árvore de natal. Não fiz. Mas tratei de quase todos os presentes. Almocei na avó. E fui tirar os pêlos, arranjar as unhas, cortar o cabelo. Cuidar do corpo também é cuidar da alma. Hoje o despertador tocou e eu não ouvi. Queria vir de comboio mas vim de carro. Antes, deixei a minha filha a chorar com os braços estendidos para mim, a pedir colo. Engulo em seco. Mais 50 kms neste dia cinzento. Chego tarde. Está a chover e eu estiquei o cabelo, sorte a minha. Vou buscar um café, passo os olhos nos blogs e trás! Mais uma estalada de realidade. As palavras que eu leio aqui encaixam que nem uma luva. Faltam 14 dias para o fim do ano.

Às vezes penso que há alguma coisa profundamente errada nisto de viver. Nisto de viver como vivemos. Acordar à pressa, tomar o pequeno-almoço à pressa sair à pressa beijar os filhos à pressa voltar a vê-los à noite numa pressa de os deitar engolir qualquer coisa à pressa ansiar pelo fim-de-semana que passa depressa demais. Descobrir que é Natal dois dias antes do próprio Natal, sem ter tempo de o degustar, de usufruir das coisas boas que ele tem, uma espécie de magia redentora com o poder de nos deixar mais felizes, e no entanto não, no entanto a quantidade de trabalho avoluma-se, há presentes para comprar, desvirtua-se todo o encantamento festivo e apaziguador, e uma vez mais é com pressa que vivemos e depressa o Natal passa e não tarda é verão outra vez, e tudo se esfuma, tudo se esvai, tudo se esboroa por entre os nossos dedos. E de repente os filhos já calçam o 39 e encontramo-los no corredor como se fossem estranhos que vivem debaixo do mesmo tecto, quem és tu?, e uma voz grossa e displicente responde qualquer coisa como, então mãe? ‘Tás bem?, e nós com vontade de largar em prantos, Não estou bem, como é que podia estar bem??? O tempo voou e eu preferia-o caminhante, vagaroso, e agora estás aqui tu no corredor, quem és tu, com essa voz grossa, com esse cabelo esforçadamente despenteado, com esse olhar sobranceiro, altivo, tão grande que nem te reconheço, assim de repente. E então vamos ao espelho mais próximo para não nos reconhecermos também, aquelas rugas não são nossas, não podem ser, aquele olhar baço não é nosso, não pode ser.


Às vezes penso que há alguma coisa profundamente errada nisto de viver. A gente corre, a gente esfalfa-se, dá o que tem e o que não tem, e um dia… tau, um ataque cardíaco fulminante. Tau, um AVC. Tau, um cancro. E é aí que toda a pressa, toda a correria, todo o desenfreio se tornam vazios de sentido, absurdos, inúteis. Como aquele caso que conheci, do homem que se ficou, ao volante, deixando mulher e quatro filhos. Como o outro que ainda dorme, hoje, num coma que não se sabe se terá fim, enquanto a mulher se azafama para criar os filhos sozinha, entre visitas ao hospital para lhe pedir que acorde, que desperte, para lhe implorar que volte para casa, para a vida, já não a de sempre mas uma nova vida, uma vida com outra calma, outro tempo.

Às vezes penso que há alguma coisa profundamente errada nisto de viver. Nisto de viver como vivemos. Depois… depois a pressa rouba-me ao pensamento sobre a pressa, e corro para a próxima paragem. A fazer vento.


[do blog Cocó na Fralda]

3 comentários a “viver à pressa [e um post que não é meu, mas bem podia ser]”

  1. Este texto é lindo! Penso muitas vezes nestas correrias que a vida nos traz. Mas infelizmente não podemos parar, o nosso estilo de vida assim o exige (a não ser que nos tornemos camponses numa aldeia bem longe). Por agora tento aproveitar ao máximo os momentos calmos e bons que tenho, mesmo que sejam curtos. É neles que respiro e me renovo. bjs e bom natal

  2. pufff…. que grande estalada!!! E infelizmente digo que também me cabe que nem uma luva..

    Mas tenho seriamente que arranjar forma de mudar isto! Com 2 filhas (uma de 1 ano e 4m e outra a caminho) tenho que conseguir contrariar, tenho mesmo, por ELAS!!!

  3. fez-se um click na minha cabeça…realmente tudo isso acontece…os filhos crescem e parece que entre o nascimento deles e o hoje só passou um dia…mas onde estava eu no resto do tempo??? mudanças virão certamente… obrigada pelo post.
    Margarida

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *